Agentes envolvidos em abordagem a adolescentes na capital fluminense prestam novo depoimento. Cláudio Castro faz reiteradas declarações de defesa à ação dos PMs
Os dois policiais militares que abordaram cinco adolescentes em Ipanema, na zona sul do Rio de Janeiro, no começo do mês, prestaram novos depoimentos nesta quinta-feira (11). Os meninos, com idades entre 13 e 14 anos, relataram truculência apenas com os negros: três deles, filhos de diplomatas do Gabão, de Burkina Faso e do Canadá, que estavam de férias na capital fluminense. O Durma com Essa conta o caso e mostra como o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), vem defendendo a ação dos agentes. O episódio tem ainda a participação de Marcelo Roubicek falando sobre a aprovação da regulamentação da reforma tributária na Câmara.
Suzana: Uma abordagem policial a adolescentes com idade entre 13 e 14 anos. Um grupo de meninos, de maioria negra, que passeava por um bairro nobre da zona sul do Rio de Janeiro. Um episódio que aponta para um racismo incrustado nas forças de segurança, por quem pretos e pardos costumam ser tratados como suspeitos, não como cidadãos, sob a anuência do governador do estado. Eu sou a Suzana Souza e este é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.
Conrado: Olá, eu sou Conrado Corsalette e tô aqui com a Suzana pra apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, todo começo de noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí.
[trilha de abertura]
Suzana: Quinta-feira, 11 de julho de 2024. Dia de novos depoimentos dos envolvidos na abordagem da polícia militar do Rio de Janeiro a um grupo de cinco adolescentes com idades entre 13 e 14 anos. O caso aconteceu no comecinho do mês. Os adolescentes passeavam, por volta das oito da noite, na rua Prudente de Moraes, no bairro de Ipanema, área nobre da zona sul da capital fluminense.
Conrado: Imagens das câmeras de segurança de um edifício mostram o momento da ação. Os adolescentes atravessam a rua para deixar um dos amigos em casa, após uma partida de futebol. Quando se aproximam da porta do prédio, os garotos são surpreendidos por um carro da PM. Dois policiais saem da viatura com fuzis, apontando as armas para os jovens.
Suzana: Três dos meninos abordados são negros. Dois deles, filhos dos embaixadores do Gabão e de Burkina Fasso. O terceiro é filho de um diplomata da embaixada do Canadá. Os outros dois adolescentes são brancos e brasileiros, um deles neto do jornalista Ricardo Noblat. Os adolescentes e suas famílias disseram que a abordagem foi truculenta apenas com os três meninos negros.
Conrado: A mãe de um dos adolescentes brancos, Rhaiana Rondon, publicou em suas redes sociais o seguinte relato da abordagem: “Com arma na cabeça e sem entender nada, eles foram violentados. Foram obrigados a tirar casacos e levantar o ‘saco’. Após a abordagem desproporcional, testemunhada pelo porteiro do prédio, é que foram questionados de onde eram, e o que faziam ali. Os três negros não entenderam a pergunta, porque são estrangeiros”.
Suzana: Ainda segundo Rondon, quatro dos adolescentes moram em Brasília e estavam no Rio de férias, numa viagem programada há meses, acompanhados dos avós de um deles.
Conrado: A mãe também relatou a mudança de atitude dos policiais no meio da abordagem. “Após ‘perceberem’ o erro, liberaram os meninos, mas antes alertaram as crianças que não andassem na rua, pois seriam abordados novamente. A abordagem foi racial e criminosa”.
Suzana: A embaixatriz do Gabão no Brasil, Julie-Pascale Moudoté, mãe de um dos adolescentes, disse o seguinte em entrevista à Agência Brasil: “O trauma dos meninos não é só de um dia. Vai permanecer e a gente vai ter que cuidar disso”.
Conrado: Logo após o episódio, revelado pelo jornalista Guga Noblat, que é filho do Ricardo Noblat e tio de um dos meninos brasileiros, as imagens começaram a rodar nas redes sociais. A Secretaria da Polícia Militar no estado afirmou que os policiais envolvidos na abordagem vestiam câmeras corporais e que as imagens serão analisadas para constatar se houve excesso. A conduta dos agentes é apurada pela corregedoria da polícia. Existe também uma investigação em curso pela Delegacia de Apoio ao Turista. Em nota oficial, a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que vai acompanhar o caso “de perto”.
Suzana: O Itamaraty, ministério das Relações Exteriores brasileiro, fez um pedido formal de desculpas aos embaixadores dos países de onde eram os garotos. Também divulgou uma nota pública na qual pediu uma “apuração rigorosa e responsabilização adequada dos policiais envolvidos na abordagem”.
Conrado: Dias depois do ocorrido, o que vem chamando a atenção é a atitude do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, em relação ao caso. Em mais de uma ocasião, o político filiado ao PL criticou o Itamaraty e defendeu a ação dos policiais. Numa das declarações, ele disse: “Atacar a polícia antes de saber o que aconteceu é muito fácil”.
[mudança de trilha]
Suzana: Na terça-feira, ao ser questionado por jornalistas na saída de um evento, Cláudio
Castro declarou que: “É muito complicado para o policial saber se é filho de um diplomata, de um rico, se é filho de alguém que está cometendo um delito” Bom, nessa declaração, o governador do Rio dividiu pessoas negras que andam por Ipanema em apenas duas categorias: ou é filho de diplomata ou é suspeito.
Conrado: Um dia depois, na quarta-feira, Castro reiterou seu argumento, e acrescentou que os policiais agiram daquela forma porque na zona sul carioca, a maior demanda de segurança pública é contra roubos e furtos praticados por jovens.
[áudio Cláudio Castro]
Eu não vou crucificar o meu policial porque ele tá trabalhando para defender a sociedade e eu acho que houve um julgamento precipitado sobretudo por parte das autoridades federais que preferiram criticar antes de ligar pra gente, antes de saber o que aconteceu. Eu não vou criticar meu policial, vou cobrar sim uma investigação isenta e séria.
Suzana: Você ouviu aí o Castro em entrevista a jornalistas na quarta-feira. O governador seguiu dizendo o seguinte:
[áudio Cláudio Castro]
A imagem fria não quer dizer nada. No primeiro depoimento dos garotos eles falam que todos os 5 foram revistados e eles falam que houve uma truculência só com três deles. No depoimento desse funcionário ele não relata isso.
Conrado: Castro assumiu o cargo de governador do Rio em maio de 2021 após o impeachment de Wilson Witzel, de quem ele era vice. O Witzel é um ex-juiz que foi eleito em 2018 como um outsider, na onda de extrema direita bolsonarista. Em 2022, Castro já titular do cargo, foi reeleito ainda no primeiro turno, com quase 60% dos votos, também associando sua imagem ao bolsonarismo.
Suzana: Witzel ficou conhecido por defender que a polícia do estado deveria atirar em todo e qualquer potencial criminoso que estivesse nas ruas portando um fuzil. “A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”.
Conrado: Witzel também foi aquele governador que desceu de um helicóptero comemorando o fato de a polícia ter matado — e não prendido — um homem que manteve 39 reféns em um ônibus por mais de 3 horas.
Suzana: A defesa reiterada da ação da polícia, mesmo que truculenta, não é exclusividade fluminense. Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas, filiado ao Republicanos, já fez diversos elogios à atuação da PM paulista diante de casos para lá de suspeitos. Em julho de 2023, Tarcísio se disse “extremamente satisfeito” com uma operação da Polícia Militar que já tinha deixado pelo menos 14 mortos em menos de três dias na Baixada Santista.
[mudança de trilha]
Conrado: Em sua coluna de quarta-feira no jornal Folha de S.Paulo, o jornalista Bruno Boghossian escreveu o seguinte: “numa declaração que soaria bizarra até numa esquete sobre a mediocridade da política de segurança do Rio, Cláudio Castro praticamente institucionalizou o perfilamento racial”.
Suzana: O jornalista comentava a fala de o governador, segundo a qual o policial não tem como saber se alguém é filho de um diplomata.
Conrado: Perfilamento racial é o uso pela polícia e por profissionais de segurança da raça, cor, descendência, etnicidade ou nacionalidade de uma pessoa como parâmetro pra que ela seja alvo de buscas pessoais, verificações de identidade e investigações. As Nações Unidas classificam, desde 2015, a prática como uma das formas contemporâneas do racismo.
Suzana: O perfilamento racial é antigo em instituições policiais não só no Brasil, mas em outros países como Estados Unidos, Colômbia e Holanda. Seja em decorrência de atitudes individuais dos agentes da lei, seja por causa de políticas e da cultura dos órgãos do poder público. Segundo a ONU, a prática viola uma série de direitos fundamentais, como o princípio da não discriminação e da igualdade perante a lei.
Conrado: Em abril, o Supremo decidiu que o perfilamento racial não pode ser usado como critério para abordagem de suspeitos. Os ministros definiram que os agentes devem realizar o procedimento apenas em caso de indícios de irregularidades.
Suzana: Um trabalho do Núcleo de Estudos Raciais do Insper feito a partir de boletins de ocorrência registrados no estado de São Paulo entre 2010 e 2020 mostra que, quando uma pessoa negra é pega com drogas, a chance dela ser enquadrada como traficante, e não usuária, é muito maior em comparação a pessoas brancas.
Conrado: Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 apontam que 83% das pessoas mortas por intervenção policial em 2022 eram negras. O relatório também mostra que 76% das pessoas negras mortas pela polícia em 2022 eram adolescentes e jovens, com idade entre 12 e 29 anos.
Suzana: Um desses casos, de adolescente morto pela polícia, foi o de João Pedro, de 14 anos, baleado durante uma operação enquanto brincava com primos e amigos dentro de casa, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, em maio de 2020.
Conrado: Os agentes invadiram a casa onde o adolescente estava e mataram ele com um tiro de fuzil. Segundo a denúncia do Ministério Público do Estado do Rio, os policiais teriam plantado no local artefatos explosivos e uma pistola 9 milímetros, com o objetivo de criar um cenário de suposto confronto. Os agentes também teriam produzido marcas de arma de fogo no portão da garagem.
Suzana: Na terça-feira, a Justiça do Rio absolveu os três policiais civis denunciados pelo assassinato do menino. Para a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine, os policiais agiram em legítima defesa. Ainda que o menino estivesse dentro de casa, desarmado, brincando com seus amigos.
Conrado: A violência da ação policial que acabou na morte de João Pedro aconteceu numa região periférica. A truculência da ação policial durante a abordagem dos cinco adolescentes aconteceu numa área nobre. O caso de João Pedro ficou impune. E se depender do que vem dizendo o governador do Rio, o caso dos adolescentes também caminha para não dar em nada.
Suzana: O Durma com Essa volta já.
[trilha redação]
Suzana: A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira regulamentação da reforma tributária. A medida detalha as regras de cobrança da CBS, a Contribuição sobre Bens e Serviços, tributo federal, e do IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços, tributo estadual. Uma das principais discussões foi sobre a inclusão das carnes na lista de alimentos da cesta básica. O Marcelo Roubicek escreveu sobre isso. Marcelo, o que ficou decidido sobre o tema?
Marcelo: Bom, o governo enviou para o Congresso dois textos para tratar desses detalhes da reforma tributária, que teve a espinha dorsal aprovada no final de 2023. Um deles é um pouco mais técnico, e fala sobre como vai funcionar a gestão e distribuição do dinheiro arrecadado no novo sistema. O segundo é esse que foi aprovado na quarta-feira pela Câmara, e que teve essa mudança sobre as carnes.
Marcelo: Quando o governo mandou o texto pro Congresso, ele propunha um desconto de 60% no imposto cobrado sobre carnes. Mas, ao colocar elas na cesta básica, o que os deputados fizeram, na prática, foi zerar o imposto. Então a carne vai ser totalmente desonerada, e isso vale pra proteína de boi, de porco, de frango e por aí vai, exceto só o foies gras, que é um produto de luxo. Essa mudança foi feita por uma emenda do deputado Rodolfo Nogueira, do PL do Mato Grosso do Sul, e passou com apoio maciço, mais de 470 votos. Mas, vale a gente lembrar, que é uma mudança que ainda precisa passar pelo Senado, além da sanção presidencial.
Suzana: E Marcelo, por que esse tema virou um impasse na Câmara?
Marcelo: De um lado do debate, a gente teve duas principais figuras: o Arthur Lira, presidente da Câmara, e o Fernando Haddad, ministro da Fazenda. E os dois tavam resistindo a incluir as carnes na cesta básica. O principal argumento deles é que se você deixa de cobrar imposto desses produtos, você precisa compensar em algum outro bem ou serviço. Então pra zerar a proteína animal, você acaba tendo que aumentar um pouquinho o imposto sobre as outras coisas. E isso levaria a alíquota cheia — ou seja, a porcentagem de imposto cobrada no novo sistema — a ficar muito alta.
Marcelo: Mas você teve do outro lado, bastante pressão pra isentar as carnes. Uma pressão veio do próprio presidente Lula, que, se a gente for lembrar, na campanha de 2022 usou a carne como símbolo da promessa de retorno do poder de compra da população. Mas ele não foi o único. Você teve também o PL, partido do Jair Bolsonaro, defendendo a isenção, justamente com o argumento de que as pessoas de baixa renda vão poder ter mais acesso à carne. Então teve uma conjunção entre esses dois partidos que costumam ficar opostos. E, além deles, teve também uma articulação importante vinda da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida também como bancada ruralista. Então a gente vê que foram vários atores que se envolveram nessa discussão. E esse segundo lado é que saiu vencedor.
Suzana: O texto do Marcelo você confere no nexojornal.com.br.
Conrado: Da defesa do governador do Rio, Cláudio Castro, a policiais que abordaram adolescentes em Ipanema ao projeto que regulamenta a reforma tributária, durma com essa.
Suzana: Com roteiro, produção e apresentação de Suzana Souza, edição de texto e apresentação de Conrado Corsalette, participação de Marcelo Roubicek, produção de arte de Lucas Neopmann e edição de áudio de Brunno Bimbati, termina aqui mais um Durma com essa. Sexta-feira é dia de Extratos da Semana, quando a gente traz pra você um resumo das principais notícias dos últimos dias. Até!